domingo, 22 de novembro de 2009

FURTO PRIVILEGIADO



AUTOS Nº 27/87
AÇÃO PENAL
AUTOR: O MINISTÉRIO PÚBLICO
REU: M. S. K. P. M. JR
DEFENSOR:JOÃO NEUDES DE LUCENA







ALEGAÇÕES FINAIS PELO ACUSADO




MM.JULGADOR



M. S. K. P. M.JR foi denunciado pelo crime de furto (art. 155, caput) , duas vezes, combinado com o art. 71, ambos do Código Pena]).


Mas quem é M. S. K. P. M. JR  Um criminoso ou mais uma vítima da desorganização social em que vivemos?


M.S.K.P.M.JR é um jovem sul africano, pobre, desempregado, que depende de seus próprios recursos para manter a sí e sua mulher que está preste a dar à luz um filho - o que já deve ter acontecido. E preto. E, certamente por ser preto, foi o que o motivou a deixar seu habitate natural, sua pátria - a Africa do Sul - onde, sabemos, impera o regime recista mais odiado do mundo, para procurar em outros plagas os anseios mairoes de todo o ser humno: liberdade, justiça e amor.


Foi assim, na busca desses ideais inatingíveis, que o denunciado chegou ao Brasil e, aqui, sabe-se lá, o que passou.


Diz ele, em seu interrogatório, que chegando em nosso País, com seus genitores, fixou residência no Rio de Janeiro, de onde, conscientemente, saiu, com a mulher, vindo parar em Rondon, nesta Comarca, na cadeia, acusado dos fatos que lhe são atribuídos na peça vestibular acusatória seja  o furto de dois cheques e o de uma calculadora. O desta ele confessa, o daqueles, nega.


Após concluída a instrução processual, o douto representante do Ministério Público desta Comarca, por certo enfrentando tremendo drama de consciência, porque humano, cessível e justo, ao arrazoar o presente processo, para não fugir ao se dever de ofício, concluiu por pedir a condenação do acusado apenas pelo furto da calculadora, já que não encontrou, nos autos, prova que esclareçam seja ele o autor do outro


A defesa não aceita a condenação do acusado, por nenhum dos fatos narrados na exordial de fls. 02, visto que não os considera crime. Assim pensa, porque não concebe como criminoso o fato de um jovem que, sem emprego e sem recursos, furta para obter condições materiais que possibilitem o nascimento de seu próprio filho.


O comportamento de um jovem que age em tal circunstância está rigorosamente enquadrado no "estado de necessidade", reconhecido, não só pelas legislações dos povos civilizados, mas que a própria "legislação moisaica", do povo Judeu antigo, há cerca de quatro mil anos, já reconhecia, quando colocava a proteção da vida humana acima de qualquer bem material.


Modernamente, mais do que nunca, não se considera criminoso quem fere algum direito agindo em "estado de necessidade", desde que presentes, como no caso em exame, vários requisitos que descaracterizam o fato como crime.


Examinando o assunto, quando da elaboração do projeto para o novo Código Penal brasileiro, o Professor Miguel Reale Jr. um dos mais respeitados criminalistas de nos País, com vigor científico, visão humanista e inspiração na justiça social, acentuou:"o interesse social legitima os comportamentos efetuados em situação de necessidade, que visam salvaguardas a bem superior em prejuízo de outro inferior"


E para ilustrar de modo bem evidente essa afirmação lembra Hengel, no século passado, de maneira incontestável, que o direito à vida prevalece sobre qualquer outro, dada a sua natureza de valor absoluto.


Destarte. o denunciado praticou o furto da calculadora, como de fato o fez, porque sem ele seria muito difícil proteger a integridade física de sua mulher ou a vida de seu filho por nascer; esse furto não é crime, porque a proteção da pessoa humana vale mais do que o objeto furtado. É o professor Reale Jr. quem lembra que o Código Penal alemão estabelece que: "a ação não é punível se o agente a pratica em situação de necessidade para salvar a vida ou a integridade física , própria ou de um parente".


No caso em análise, a aplicação dos princípios sobreditos, se impõe como um imperativo de direito e de justiça.


Resultou claro nos autos que o acusado furtou a calculadora, de irrisório valor monetário, por se achar em situação dramática e desesperadora, necessitando de dinheiro para atender a mulher preste a dar-lhe um filho... Era evidente. nesse caso, que estavam sendo prejudicados o direito à integridade física e a própria vida, tanto da mulher do réu, quanto do seu filho.


È evidente que o denunciado e, muito menos sua mulher e o seu futuro filho não provocaram a situação de perigo, que é decorrência da ordem social injusta vigorante no Brasil, bem como da cegueira e da imoralidade dos que detêm o poder econômico e político no País. Aliás, se não existissem.outros argumentos, o acusado poderia invocar,~em seu favor, a igualdade de todos perante a lei, de que fala a Constituição, pois notórios ladrões do dinheiro do povo andam solto por aí, alguns até ocupando altos postos no governo da Nação. E, assim, ninguém com alguma sensibilidade moral sustentará que o direito patrimonial do cirurgião dentista, proprietário da calculadora subtraída pelo acusado, é mais valioso do que o direito à integridade física de uma mãe e à vida de seu futuro filho.


Desse modo, demonstrado fica que o jovem sul-africano, não cometeu crime algum, pois agiu em evidente estado de necessidade e se sacrificou em defesa da integridade física de sua mulher e de seu filho, por nascer. 
Condená-lo, data vênia, seria uma imoralidade.


A defesa pede, pois, a absolvição do acusado.


Cidade Gaúcha, 25 de junho de 1987.
João Neudes de Lucena
DEFENSOR DATIVO

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